Nas semanas seguintes, a rotina engoliu-me novamente. Apenas algumas fagulhas do que aprendera com minha amiga cintilavam em raras ocasiões. Como ela havia previsto, os exageros das atividades cotidianas
me impediam de perceber as coisas importantes.
Oito meses se passaram, e minha vida voltou a ser exatamente como era antes. Nossa viagem tornou-se apenas uma lembrança agradável de algo incomum.
Tudo permaneceu na mais pura rotina até o dia em que um grupo de amigos me convidou para um final de semana numa estância turística nas montanhas. Era inverno, e viajamos em seis pessoas para um chalé alugado.
Saímos num sábado pela manhã em dois carros e dirigimos cerca de três horas até nosso destino.
Quando chegamos próximos à cidade, fomos surpreendidos por uma densa neblina. A visibilidade estava reduzida a poucos metros, e só encontramos o chalé porque uma médica do nosso grupo conhecia bem o caminho.
Desembarcamos nossas malas, dividimos os quartos e saímos para almoçar. A neblina persistiu impenetrável e onipresente durante todo o tempo.
Eu era o único do grupo que estava naquele lugar pela primeira vez, e todos lamentavam a neblina. Queriam que eu visse como a paisagem era espetacular. Ficamos na cidade até o anoitecer, e mal consegui enxergar os prédios mais próximos.
Era curioso estar num lugar que todos diziam ser maravilhoso, mas onde eu não era capaz de ver quase nada. À noite, voltamos ao chalé envolvidos pela densa neblina. Conversamos durante algum tempo, tomamos vinho e fomos dormir.
Acordei bem cedo na manhã seguinte e, enrolado em meu cobertor, fui até a varanda ver como estava o tempo e aproveitar para respirar o ar puro da montanha. Todos ainda estavam dormindo, portanto tomei cuidado para não fazer muito barulho. Quando abri a porta, foi como olhar para dentro de uma sala cheia de
algodão. A neblina estava ainda mais forte. Tão intensa que produzia um silêncio sufocante no ar. Fiquei triste, pois iríamos embora naquela tarde, e eu não veria a maravilhosa paisagem que meus amigos tanto anunciaram.
Ainda enrolado no cobertor, saí e sentei-me numa espreguiçadeira.
O ar estava gelado e completamente parado. Decidi desfrutar daquela sensação de irrealidade.
Fiquei lá, sentado, sem pensar em nada durante cerca de dez minutos.
De repente, meus olhos pousaram no parafuso de um suporte de vaso.
Lembrei-me da bruxa. “Quantos parafusos você viu hoje?” ela tinha-me perguntado. Tanto tempo já se havia passado. Onde estaria ela naquele momento? As recordações de nossa viagem começaram a chegar no mesmo instante em que senti o ar mover-se.
Continuei relembrando nossas aventuras e percebi que a neblina estava se tornando menos espessa. Após alguns segundos, consegui ver nossos carros parados em frente à cabana, depois um pequeno lago mais adiante, em seguida o contorno das montanhas, e, de repente, como se uma
grossa cortina tivesse sido removida, o céu surgiu totalmente azul, e o sol iluminou a paisagem mais deslumbrante que eu já vira. Foi um acontecimento tão mágico que meus olhos inundaram-se de lágrimas.
Naquele instante senti a presença da bruxa ao meu lado, ensinando-me ler na natureza a linguagem que Deus usa para conversar conosco.
Devo ter ficado em transe por mais de uma hora e só me dei conta de onde estava quando ouvi o barulho do pessoal se levantando para preparar o café.
O resto do dia foi maravilhoso. Voltamos à cidade, e pude ver as casas e os prédios que estavam invisíveis no dia anterior. Almoçamos num restaurante delicioso e à tarde passeamos de carro pelas montanhas, apreciando a incrível paisagem. Só lamentei não ter levado minha câmera fotográfica.
Gostaria de ter registrado algumas imagens para nunca me esquecer daquele dia tão especial.
No final da tarde, arrumamos nossas coisas e voltamos para as atribulações da cidade grande.
Meus amigos me deixaram na entrada do prédio em que moro e foram embora. Ao passar pela recepção, aproveitei para pegar minha correspondência.
Lá estavam algumas contas, folhetos publicitários e um cartão postal mostrando a Torre Eiffel. Virei imediatamente o cartão e li:
Não é suficiente entender
É preciso aprender.
E aprender é repetir até ser
capaz de fazer por si mesmo.
Não deixe a neblina
impedi-lo novamente.
Estou esperando o livro.
Um beijo.
Subi, liguei o computador, coloquei uma música no aparelho de som, meu amuleto sobre a mesa e comecei a escrever esta história.
O Livro da Bruxa...
Post scriptum
Sei que, apesar de tudo, é difícil acreditar na existência de alguém tão especial quanto a bruxa. Ao mostrar este livro aos amigos, mesmo eles duvidaram da veracidade da história.
Assim, julguei por bem acrescentar uma foto do cartão postal e do presente que recebi de minha amiga.
Como escreveu Cícero:
Quid praeclarius mihi accidere potuit?
(Que de mais admirável pode me acontecer?)
Fim