quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Livro da Bruxa - 8º Capítulo

Relacionamentos

O posto possuía uma lanchonete bastante simpática. Depois de abastecer o carro, convidei-a para tomarmos o café da manhã ali.
Pegamos dois sucos de laranja, croissants e escolhemos uma mesa relativamente isolada para nos acomodarmos. De lá, podíamos observar tanto a estrada quanto o movimento das pessoas dentro do salão.
- Como é que as mulheres se tornam deusas? Ou elas já nascem assim? - perguntei, retomando nossa conversa.
- Raríssimas nascem com essa característica. A grande maioria demora para conquistar essa condição... Umas mais, outras menos.
- E como é esse processo? Existe uma receita? - Vou lhe contar como vejo a maioria se formar - declarou.
Ela bebeu um pouco do suco antes de continuar. - As mulheres vivem num ambiente muito repressivo. Quando meninas, são educadas para acreditar que o mundo é dos homens e sofrem restrições de todo tipo, especialmente em relação ao trabalho e à sexualidade. Até bem pouco tempo, éramos pressionadas por causa da virgindade e do risco da gravidez antes do casamento... Ainda bem que isso está mudando.
- É verdade. As novas gerações estão começando a deixar de lado certos tabus - concordei.
- Por serem mais emotivas, as mulheres passam a juventude procurando pelo príncipe encantado. Namoram e sentem-se felizes, daí casam-se iludidas, achando que tudo continuará maravilhoso... Mas, em pouco tempo, descobrem que o casamento foi um feitiço que transform ou seu príncipe encantado num sapo - concluiu.
- Ah, mas as mulheres também se estragam após o casamento - protestei, vestindo a carapuça.
Ela riu de minha atitude machista.
- É impossível não se estragar estando casada com um sapo, não acha? - fulminou-me.
Ela tomou mais um pouco do suco antes de prosseguir.
- Apesar da decepção com a vida conjugal, as mulheres tentam manter a situação, pois sabem que existe uma pressão ainda maior sobre as separadas, ainda mais se tiverem filhos pequenos. Assim, muitas se conformam e passam a se dedicar totalmente às crianças. Anulam seus desejos, deixam de se cuidar, sufocam seus sonhos e se atrofiam.
- Ser mãe é padecer no paraíso... - provoquei. Ela fingiu não ter ouvido meu comentário inoportuno.
- Quando se chega a este ponto, os maridos procuram em outras mulheres o brilho que suas esposas já não exibem mais. O relacionamento torna-se falso, leviano e doloroso. Os sentimentos afetivos do início são
substituídos por medo, culpa, cobrança e insegurança. Transformam-se em inimigos declarados, obrigados a conviverem na mesma casa.
- É horrível - interferi.
- O mais inacreditável é que muitos casais conseguem sustentar esta situação até o fim de suas vidas. É uma prova da fantástica adaptação dos seres humanos aos ambientes hostis.
Um saleiro e um paliteiro estavam sobre nossa mesa. A bruxa pegou o paliteiro e mudou-o de posição, afastando-o do saleiro.
- Em alguns casos, o relacionamento torna-se tão insustentável que não resta outra alternativa senão a separação. Daí, a mulher sofre muito, principalmente porque desconhece sua força. Esse é o ponto crucial.
É nessa fase que ocorre o despertar de muitas deusas - concluiu.
- Como? - perguntei.
Ela segurou o paliteiro como se ele fosse a personagem feminina da sua narrativa.
- Após a separação, algumas mulheres se desesperam e deixam suas vidas murcharem. Outras, entretanto, passada a fase da tristeza, descobrem todo seu potencial, desabrocham, tornam-se independentes e seguras. Percebem como eram frágeis às correntes sociais que as restringiam... Evoluem, como borboletas que emergem de seus casulos.
Lembrei-me das mulheres que considerava como deusas e percebi que a maioria tinha percorrido exatamente o caminho descrito pela bruxa.
- Então não existem deusas casadas? - perguntei.
- Claro que existem, mas são raras. Nos moldes atuais, o casamento é uma instituição muito asfixiadora. As mulheres casam-se e, algum tempo depois, têm de se separar para poder desenvolver todo seu potencial. Isso está acontecendo com uma freqüência cada vez maior.
- Ótimo. Quanto mais deusas, melhor - declarei.
- Não sei se seus amigos concordariam com você.
- Por que não? - indaguei.
- Mulheres assim deixam vocês extremamente inseguros. É por isso que vocês estão consumindo toneladas de medicamentos para impotência sexual ou fazendo tratamento para ejaculação precoce. A maioria dos homens ainda não está preparada para lidar com mulheres tão independentes.
- Preciso pensar melhor sobre isso - admiti.
- É tempo de começar a perceber que vocês também terão de se transformar para fazer par com estas novas mulheres.
Mordi um pedaço do meu croissant, enquanto dezenas de idéias faiscavam em minha cabeça.
- Não sabia que você era contra o casamento - comentei.
- Não sou contra o casamento. Também já fui casada. Aliás, se não fosse o casamento, eu não seria a bruxa que sou - disse, piscando para mim.
- Mas você acabou de dizer que o casamento é asfixiante e em seguida diz que não é contra... Não entendo - resmunguei.
- É porque você insiste em ver as coisas por um único ponto de vista.
Não existem coisas boas nem ruins. É tudo uma questão de perspectiva.
- Só gostaria de saber sua opinião sobre o casamento - insisti.
- Atualmente não existe nada melhor para estragar o relacionamento entre duas pessoas do que o casamento. É claro que existem exceções.
Mas a vida do casal geralmente não funciona porque acaba com uma negociação saudável que precisa existir entre homens e mulheres.
- Como assim? - perguntei.
- Os homens oferecem carinho, mas desejam sexo. As mulheres oferecem sexo, mas desejam carinho. Só o namoro consegue manter essa negociação equilibrada. Repare como os namorados agradam-se, trocam presentes, carinhos e aproveitam todos os momentos juntos. Fazem isso porque estão juntos por opção, não por obrigação.
Fez uma pausa e olhou os carros que passavam na estrada.
- O casamento acaba com esse equilíbrio - continuou -, pois obriga ambos a dormir todos os dias na mesma cama. Transforma o homem e a mulher em membros da mesma família. Esquece que a libido é estimulada
pela ação de conquistar, é um instinto primitivo semelhante a uma caçada...Não há estímulo numa relação sexual com alguém de sua própria família.
- Por esse ponto de vista, você acaba de converter o casamento numa relação incestuosa - comentei.
- A convivência obrigatória sufoca o casal, a opção se extingüe, e ambos se tornam infelizes, sem entender qual foi o grande erro cometido - concluiu.
- E onde está o erro? - perguntei.
- No quarto de casal - disparou.
- Então o quarto de casal é o culpado? - perguntei.
- Na verdade, a cama de casal é uma excelente invenção. Eu adoro camas grandes e macias. O problema surge quando somos obrigados a dormir todos os dias no mesmo quarto com a mesma pessoa. Esta foi uma
das piores idéias da humanidade. É o assassinato da galinha dos ovos de ouro.
- Assassinato da galinha dos ovos de ouro? - indaguei.
- Você conhece a história da galinha dos ovos de ouro, não é?
- Conheço, é claro. É uma fábula de Esopo, o escravo que viveu na Grécia há mais de dois mil e quinhentos anos - disse, tentando impressioná-la.
Ela permaneceu calada.
- Apesar de conhecer a história, estou curioso para ouvir sua versão - declarei.
- Por quê? - perguntou, cruzando os braços.
- Porque tenho certeza de que sua versão deve incluir alguma perspectiva nova. Pode começar, estou prestando atenção... - intimei-a.
Ela sorriu, descruzou os braços e começou a contar. - Certo dia uma galinha botou um ovo de ouro maciço. Sua dona ficou muito feliz, vendeu o ovo e reformou a casa. Uma semana depois, a galinha pôs outro ovo de
ouro. A mulher vendeu-o e comprou móveis novos. Algum tempo depois, a galinha repetiu a façanha, e a mulher usou o dinheiro para viajar. Na volta, como a galinha demorara para pôr outro ovo, a mulher não agüentou, pois ficara gananciosa. Pegou uma faca e abriu a barriga da pobre ave em busca do ouro... Moral da história: ficou sem os ovos e sem sua galinha - concluiu.
Esperei pela continuação.
- Nos relacionamentos acontece a mesma coisa - prosseguiu. - Como só se vêem periodicamente, os namorados estão sempre alegres, arrumados e perfumados. Os passeios são sempre incríveis. Qualquer oportunidade é motivo para trocar um beijo ou um carinho, e o sexo é uma delícia.
Tudo é maravilhoso. Então, ficam gananciosos e querem tudo de uma vez.
O casamento é a faca que mata a galinha dos ovos de ouro.
- Se o casamento é tão terrível, por que as mulheres o desejam tanto? Estou cansado de ver revistas especializadas em vestidos de noivas...
- É porque ser uma solteirona é muito mais grave do que ser separada.
A mulher ainda é educada para se casar. Se isso não acontece, ela fica com o estigma de não ter realizado algo importante em sua vida. Suas amigas passam a discriminá-la veladamente. Além disso, a filha solteira corre o risco de ter de cuidar dos pais na velhice. Até recentemente, a única forma aceita pela sociedade para a mulher sair de casa era através do casamento.
- Agora já sei sua opinião. Você é realmente contra o casamento - sentenciei.
- Não sou contra o casamento. Sou contra as coisas que sufocam a aventura de estar viva. Infelizmente, hoje o casamento está nessa condição.
Você já reparou que nenhum super-herói é casado? Nem os personagens do Disney. Todos são sobrinhos, tios, avós, primos e namorados.
Aquela última colocação me surpreendeu. Fiquei pensando em como, após tantos anos sendo fã dos super-heróis e lido centenas de histórias em quadrinhos, não havia notado algo tão evidente.
Ela terminou seu suco e chamou-me de volta de minhas reflexões.
- Acho que podemos ir, não é? O oceano nos aguarda - disse.
- Então não vamos deixá-lo esperando - exclamei. Levantei-me, dei a volta e afastei gentilmente sua cadeira. Ela agradeceu, fazendo uma mesura.
Retornamos ao carro em silêncio. Eu só pensava no quanto estava aprendendo com ela em um único dia.

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