quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Livro da Bruxa - 12º Capítulo

Armaduras

Convidei-a para almoçar num restaurante de frente para o mar. Era um dia muito especial, e eu queria um almoço à altura.
Quando entramos no restaurante, faltavam alguns minutos para o meio dia, e poucas pessoas estavam almoçando naquele horário.
O maître nos recebeu e indicou uma mesa com excelente vista da praia.
Um garçom trouxe os cardápios e o antepasto. Pedi água e dois cálices de vinho branco enquanto escolhíamos no menu.
Quando o vinho chegou, brindamos à nossa viagem.
- Fico impressionado com a forma que você encara a vida - comentei.
- Estou aprendendo mais hoje do que nos últimos dez anos.
- É simples. Basta ver as coisas por mais de uma perspectiva. É só uma questão de treino - disse, modestamente.
Peguei uma margarida do arranjo de flores que enfeitava nossa mesa.
- Quero oferecer-lhe esta flor como agradecimento pelo maravilhoso dia que você está me proporcionando.
- Obrigada...
Ela ficou algum tempo olhando para o presente.
- Esta flor, por exemplo. Você já estudou botânica, não é? - perguntou.
Não entendi a súbita mudança de assunto.
- Botânica? Estudei no colégio, mas já faz muito tempo. Não me lembro mais de nada - justifiquei.
- As plantas são seres vivos, e as flores, seus órgãos reprodutivos, sabia? - perguntou.
Enquanto eu tentava entender aonde ela queria chegar, ela continuou olhando para a flor com uma expressão divertida.
- O que você acha de alguém que arranca o órgão sexual de uma outra espécie e o oferece como presente - disse, recriminando-me.
- Nossa, nunca tinha pensando nisso! É terrível! Nunca mais vou dar flores - exclamei.
Olhei para o enfeite de flores sobre a nossa mesa e imaginei uma noiva carregando um buquê de órgãos genitais. Não pude deixar de rir do absurdo.
A bruxa pegou um pedaço de pão e começou a passar manteiga nele.
- Não quis estragar seu presente, apenas treinar um pouco mais ver as coisas por um outro ângulo - declarou.
Colocou um pouco de sal sobre a manteiga.
- Quanto a nunca mais dar flores, é um exagero de sua parte. Elas são maravilhosas e alegram nossas vidas. Adoramos receber flores. Para resolver o problema, basta presentear com flores plantadas, e todos ficarão felizes, inclusive a plantinha.
- Você adora me solapar, não é? - perguntei.
- Solapar é um conceito interessante. De onde você tirou isso? - indagou, interessada.
Comecei a contar uma longa história.
- Quando estava na escola de medicina, eu e uma amiga adorávamos um joguinho que chamávamos de solapagem. Tínhamos descoberto que a palavra solapar significa minar, arruinar, demolir... E era exatamente este o objetivo da nossa brincadeira.
Fiz uma pausa para tomar um gole de vinho.
- Funcionava assim: quando um de nós contava algo que havia feito ou pretendia fazer, o outro ouvia com grande atenção, procurando por um ponto vulnerável que pudesse demolir toda a estrutura... Como você fez ao dizer que as flores são os órgãos sexuais das plantas... Quando achávamos o ponto, disparávamos a observação demolidora. Sempre que isso acontecia, ríamos muito e comemorávamos a solapagem. Nosso prazer era comparável ao das crianças que fazem castelos de areia e depois esperam ansiosamente
a maré subir e desmanchá-los.
Ela ofereceu-me o pedacinho de pão com manteiga que havia preparado.
Aceitei o carinho.
- Estava com saudade da brincadeira de solapagem. E hoje descobri a mestre suprema deste jogo - comentei.
- Demolir nossos castelos mentais permite-nos evoluir, pois, quando um é derrubado, podemos construir outro melhor com a experiência adquirida - disse.
- É verdade. Um professor certa vez me disse que só estamos realmente prontos para fazer alguma coisa no momento em que terminamos de fazê-la, pois é apenas nesta hora que conhecemos todas as dificuldades.
Ela começou a preparar outro pedacinho de pão.
- Por isso é importante estar sempre construindo e demolindo nossos castelos. Precisamos abandonar nossas certezas para podermos crescer. O problema é que achamos as mudanças assustadoras. Sair da rotina nos deixa expostos e vulneráveis - comentou.
De repente, ela interrompeu o que estava fazendo e olhou para dentro do restaurante.
- Veja, lá está uma amiga que vive enfrentando este problema - disse.
Voltei-me rapidamente, mas não vi ninguém. Achei que a pessoa havia passado antes de eu me virar.
- Quem era? Não consegui ver - reclamei.
- Não consegue ver porque não quer... Ela ainda continua lá - disse, sorrindo.
Tornei a olhar. Não havia nenhuma pessoa na direção apontada, apenas algumas mesas vazias e um enorme aquário no fundo do restaurante.
Achei que ela estivesse gracejando comigo.
- Desculpe seu péssimo aluno, mas ainda não consegui encontrá-la. Ela é invisível? - provoquei-a.
- Venha comigo. Vou lhe mostrar!
Ela se levantou, pegou-me pela mão e levou-me até ao aquário.
- Veja! Aí está ela - disse, apontando para uma enorme lagosta que caminhava entre as pedras do fundo. Minha cara de interrogação deve ter sido tão grande que ela começou a explicar antes de qualquer outra manifestação de minha parte.
- A lagosta - disse -, diferente da maioria dos animais, possui o esqueleto do lado de fora do corpo. Sua carapaça é uma armadura que a protege das agressões do mundo. Semelhante aos cavaleiros da Idade Média, dentro de sua armadura ela é praticamente inexpugnável.
Ela tocou de leve no vidro como se estivesse acariciando o animalzinho.
- Nós também desenvolvemos uma carapaça semelhante à da lagosta - continuou. - Estabelecemos padrões e os utilizamos para nossa proteção.
A única diferença é que nossa armadura é feita de rotinas e preconceitos.
- Por exemplo? - indaguei.
- Coisas do tipo: devemos sempre seguir o grupo, quem não freqüentou a escola não sabe nada, o trabalho tem de ser desagradável, as pessoas separadas são infelizes, é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente, e assim por diante.
- Com este último eu concordo. Com certeza é melhor ser pobre com saúde do que rico e doente - declarei.
-Acho melhor ser rica com saúde do que pobre e doente - retrucou, séria.
Levei quase dois segundos para perceber o jogo de palavras. Quando entendi, desatei a rir.
- Você tem razão, é muito melhor - comentei, ainda rindo.
- Este é um exemplo típico de nossos padrões mentais. Não é obrigatório rotularmos algo de ruim para compensar alguma coisa que acreditamos
ser boa. Isso são distorções de nossa cultura. Só os sofredores entrarão no reino do céu é o maior disparate que já ouvi. Deus não quer assistir ao sofrimento de Sua própria criação. Ele quer que sejamos ricos, com saúde, belos, inteligentes, justos, felizes e todas as outras coisas boas que pudermos imaginar. Fica a nosso critério estabelecermos nossos próprios limites.
Ela tocou novamente o vidro do aquário.
- Somos iguais a essa lagosta: criamos uma carapaça para nos proteger, mas ao mesmo tempo limitamos nosso espaço para crescer... Para crescermos é necessário tentar sempre novos números no trapézio, dar saltos mortais no escuro, aprender novas brincadeiras. O mais triste é que muitas pessoas só percebem isso quando chegam ao fim de suas vidas - concluiu.
- Como se resolve isso? - perguntei.
- Da mesma forma que a lagosta - respondeu.
- E como ela o faz?
- Quando sente que a carapaça está ficando muito apertada, ela simplesmente a abandona.
- Parece fácil... para uma lagosta - murmurei.
- Não é fácil, não. Sabe por quê?
Balancei a cabeça, revelando minha ignorância sobre o assunto.
- Primeiro porque é bastante complicado sair da carapaça antiga.
Depois, porque, quando a lagosta abandona sua armadura, torna-se vulnerável e exposta. Qualquer peixinho pode mordiscá-la sem dificuldade. Imagine então como ela deve se sentir em relação aos grandes predadores...
Este período de risco e angústia dura várias horas, até a superfície de seu
corpo endurecer e formar uma nova proteção - explicou.
- Não sei se estou pronto para arriscar ser devorado como nossa amiga aqui - confessei.
- O risco faz parte do processo de crescimento - sentenciou.
Fiquei em silêncio, observando a lagosta. A bruxa olhou para mim.
- Em seu caso, sua proteção está no fato de você acreditar que pode passar a vida contando histórias aprendidas pela experiência dos outros.
Como disse, vim ajudá-lo, porque está na hora de soltar-se e partir para suas próprias viagens.
- Tomara não existam peixes muito grandes e famintos por perto - declarei.
- Com certeza eles existem... mas você irá sobreviver. Venha, vamos voltar à nossa mesa e pedir o almoço. - Tudo, menos lagosta! - gritei.
Ela riu, pegou-me carinhosamente pela mão e conduziu-me de volta à mesa.

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