domingo, 31 de outubro de 2010

O Livro da Bruxa - 5º Capítulo

5º Capítulo - Anjos

No domingo pela manhã, fui visitá-la. Quando cheguei, ela estava fora da cama e vestia uma roupa leve muito colorida.
- Bom dia - cumprimentei-a.
- Bom dia. Está pronto para sua aula prática? - perguntou.
Cocei a cabeça como se tivesse esquecido de trazer o caderno com a lição de casa.
- Já? Não sabia que a aula prática seria hoje. - O dia está lindo. Não temos um minuto a perder. Vamos! - ordenou.
Pegou sua sacola sobre a cama e dirigiu-se para a porta.
- Ei! espere. Você está internada. Não pode sair do hospital assim - exclamei, já começando a entrar em pânico.
- É claro que posso. Além do mais, vou levar o médico comigo - justificou, sorrindo.
- E aonde você pensa que vamos? - Iremos à praia.
Ela colocou a sacola no ombro e olhou em volta para ver se não estava esquecendo nada.
- Não podemos sair do hospital assim. Você ainda não teve alta. É preciso preencher o...
- Não se preocupe. Minha saúde está excelente. Além do mais, preciso ir ao litoral hoje. Podemos aproveitar e passear um pouco pela praia.
Prometo que irei me comportar. Onde está seu carro? - perguntou, fingindo sussurrar.
- Meu carro? Está no estacionamento do subsolo, mas acho... - balbuciei, tentando convencê-la a desistir. - Venha - disse, puxando-me pela mão. - Temos muitas coisas para fazer hoje. Podemos conversar no caminho.
Fui conduzido até o elevador sem reagir. Só me lembro de ter dito “estamos saindo” quando passamos pelo posto de enfermagem e da imagem da enfermeira boquiaberta, sem entender nada.
No minuto seguinte, estávamos no carro saindo da garagem do hospital.
- Vamos mesmo à praia? - perguntei, numa última tentativa de voltar à realidade.
- Relaxe. Às vezes precisamos fazer coisas imprevisíveis. São elas que temperam a vida - ela respondeu, afivelando o cinto de segurança.
Seguindo seu conselho, tentei relaxar. Afinal, não havia nenhum mal em ir à praia numa linda manhã de domingo. O máximo que poderia acontecer era o diretor do hospital descobrir e me expulsar da equipe. Mas, se não pudermos fugir da rotina de vez em quando, de que adianta tanto trabalho?
- Trouxe as uvas que sobraram para comermos na viagem. Quando quiser é só pedir - avisou.
Ela remexeu em sua sacola. De lá, tirou um chapéu de tecido e colocou- o na cabeça. Em seguida, pegou seus óculos de sol. Com aquela roupa colorida, chapéu e óculos escuros, ela parecia uma adolescente. Era muito diferente das outras pessoas idosas que eu conhecia. Novamente pensei que, se conseguisse chegar aos 86 anos, gostaria de ter um espírito jovial como o dela.
Percorremos as ruas tranqüilas, atravessando a cidade em direção à estrada. O céu estava azul, e apenas algumas nuvens preguiçosas moviam-se com o vento. Sem o trânsito costumeiro, estava muito agradável dirigir naquela manhã de domingo.
Faltava pouco para chegarmos à avenida que nos levaria à estrada, quando um carro velho e mal cuidado entrou na nossa frente, numa velocidade digna de uma tartaruga. A rua era estreita, e os carros estacionados em ambos os lados impediam-me de ultrapassá-lo.
- Arrr! Esse imbecil está muito devagar. Será que ele não percebe? - rosnei.
- Você acha isso ruim? - perguntou a bruxa. - Claro que é ruim... O idiota está atrapalhando todo o trânsito - resmunguei, irritado.
Alguns carros já se enfileiravam atrás de nós. Logo alguém iria começar a buzinar.
De repente, apareceu uma chance, e consegui ultrapassá-lo. Foi uma manobra arriscada, mas bem-sucedida.
- Repare no motorista - disse ela. - O que acha dele?
Olhei pelo espelho retrovisor. O motorista fazia um par perfeito com seu carro. Seu cabelo era malcuidado e engordurado. O homem tinha uma barba rala e cheia de falhas. A camisa estava suja e amassada. Parecia um mendigo motorizado.
- É uma tragédia - respondi. - Não sei quem está pior, o carro ou o motorista.
- Pode ser o disfarce ideal de alguém muito importante, você não acha?
- Um disfarce? Como assim? - perguntei. Antes que ela pudesse me responder, um enorme caminhão saiu de um estacionamento no fim da rua e começou a manobrar, bloqueando a passagem. Diminuí a velocidade até parar totalmente.
- Ai! - resmunguei. - Hoje deve ser o dia dos idiotas. Será que ele não podia ter esperado nós passarmos antes de sair? - resmunguei comigo mesmo.
- Parece que estão querendo nos segurar, não é? - comentou.
- Desculpe-me. Não tenho o costume de me irritar ao dirigir, mas hoje estão abusando da minha boa vontade - justifiquei.
- Você já reparou no motorista do caminhão? - perguntou, chamando minha atenção.
Era um sujeito gordo, meio careca e com uma expressão de pouca inteligência. Usava uma camiseta vermelha sem mangas e tinha uma tatuagem no ombro esquerdo. - Mais um idiota - desabafei.
- Talvez seja um outro disfarce - murmurou, sorrindo.
Fiquei sem entender aonde ela estava querendo chegar com a história dos disfarces, mas pressenti que logo ela iria me contar, e permaneci em silêncio.
O caminhão terminou a manobra e virou na primeira esquina, deixando o caminho desimpedido.
Ela retomou a conversa.
- Você achou ruim o carro velho e o caminhão terem nos atrapalhado, não é?
- Claro que sim - respondi, ainda tentando disfarçar minha irritação.
- Então vamos à sua aula prática. Vamos transformar as coisas ruins em coisas boas - exclamou. Ajeitou-se no banco, virou-se para o meu lado e levantou um pouco a aba do chapéu.
- Suponha que seu anjo da guarda realmente exista. E imagine que ele seja capaz de prever as situações de perigo... Assim, como bom anjo, ele deve protegê-lo e impedir que você se prejudique, não é?
Ela juntou as mãos e entrelaçou os dedos. - Vamos supor também que o seu anjo não possa aparecer para avisá-lo, pois isso seria contra as regras angelicais. Mas que lhe fosse permitido utilizar disfarces para interferir em seu caminho - disse.
Fez uma pausa para certificar-se de que eu estava acompanhando a história.
- Ao perceber um perigo adiante, ele poderia transformar-se num motorista dirigindo um carro caindo aos pedaços e entrar na sua frente para atrasá-lo ou num caminhoneiro que decide manobrar no exato momento em que você está passando. Desse modo, quando você for liberado, o perigo já não existirá mais.
Comecei a sorrir, mas permaneci em silêncio.
- O semáforo que fecha bem na sua vez de passar, o elevador que demora uma eternidade, um pneu furado, o telefone que não funciona, uma chuva inesperada... Tudo isso pode ser obra de seu anjo da guarda para atrasá-lo um pouco e salvá-lo dos acidentes. Já pensou nisso? - finalizou. Olhei para ela, admirado, e recebi uma piscadela por cima dos óculos
escuros.
Explodi numa gargalhada. Era realmente genial. Eu ia começar a falar, mas ela apontou algo.
- Veja! Lá está um exemplo de como trabalham nossos anjos da guarda. Pare o carro para podermos ver melhor - pediu.
Ela indicava um grupo de crianças que brincavam de pular corda numa praça. Estacionei e ficamos observando durante algum tempo.
Duas crianças giravam a corda, e as outras esperavam a vez de entrar para pular.
Eu não estava entendendo qual era a relação daquela brincadeira com a história dos anjos da guarda, mas já estava me acostumando com suas excentricidades. Ela começou a explicar.
- Para pular a corda é preciso saber o instante exato de entrar. Se estiver adiantado ou atrasado, ela baterá no seu pé. E para saber qual é o momento certo é preciso sentir o ritmo da corda e entrar em ressonância com ele. Uma menininha começou a se preparar para entrar. - Observe o que ela irá fazer - sugeriu.
Prestei mais atenção.
A menininha aproximou-se, olhando fixamente o movimento da corda. Pouco depois, seu corpo começou a oscilar no mesmo ritmo, e, no instante seguinte, ela entrou e começou a pular. Contou dez saltos em voz alta e saiu, passando a vez para a próxima criança.
- E então? O que essa brincadeira tem que ver com o trabalho dos anjos da guarda? - perguntei. Ela virou-se para mim.
- O universo possui um movimento semelhante ao da corda. Os antigos chineses batizaram este ritmo de Tao. Quando o respeitamos, tudo em nossa vida funciona maravilhosamente bem. Nossa saúde é boa, prosperamos nos negócios, fazemos boas amizades, dormimos felizes e acordamos dispostos. A vida torna-se fácil, leve e divertida.
Fez uma pausa e suspirou.
- Entretanto - continuou -, às vezes saímos do ritmo... Queremos pular a corda no momento errado. Olhou para mim e ajeitou seus óculos antes de prosseguir.
- É isso que nosso anjo sabe. Ele conhece o ritmo da corda universal.
Então, para evitar que ela bata em nossos pés, tenta nos atrasar até chegar uma nova oportunidade... As vezes, conseguimos driblá-lo e insistimos em permanecer fora do ritmo.
- Como quando arrisquei ultrapassar o carro velho que estava na nossa frente - murmurei.
Ela sorriu concordando.
- Ainda bem que seu anjo foi rápido e conseguiu arranjar um caminhão para detê-lo. Nem sempre eles conseguem ser tão eficientes - disse.
Fiquei alguns segundos olhando para ela sem dizer nada.
- Você é única, sabia? - declarei, quebrando o silêncio.
- Espero que, de agora em diante, você seja capaz de identificar sozinho as manifestações de seu anjo e pare de chamá-lo de idiota - recomendou.
- Vou tentar, mas devo admitir que ele é um mestre nos disfarces.
- Todos eles são, por isso são anjos.
- Pegue as uvas e vamos brindar aos nossos anjos - sugeri.
Liguei o carro, e seguimos até a estrada, comendo uvas.

2 comentários:

Helen disse...

Ola e o 6 capitulo estou anciosa pra saber as proximos capitulos

Rosalina disse...

Seu blog é maravilhoso.Obrigada por nos presentear com ensinamentos maravilhosos,por nos ajudar a ser pessoas melhores.