segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Livro da Bruxa - 6º Capítulo

6º Capítulo - Agrupamentos

Contrário ao que eu havia imaginado, o tráfego não estava tranqüilo na estrada. Muitos carros se dirigiam ao litoral. Isso não era comum numa manhã de domingo, fora do período de férias.
Com trânsito, a viagem seria mais desgastante. Comecei a acompanhar o veículo da frente com bastante atenção. Liguei o rádio para aliviar a tensão. Estava tocando uma música antiga.
- Muita gente decidiu ir à praia hoje. Não esperava todo esse movimento - comentei.
Ela ficou em silêncio durante alguns momentos. - Vá para a faixa da direita e desacelere - pediu.
Achei que ela estivesse se sentindo mal ou precisasse ir ao banheiro. Fiquei preocupado, pois estávamos longe do próximo posto de gasolina.
- Por quê? Há alguma coisa errada? Você está bem? - perguntei, tenso.
- Fique sossegado. Só quero lhe mostrar algo - tranqüilizou-me.
Respirei aliviado. Mudei de faixa e diminuí a velocidade.
- Um pouco mais devagar, por favor - pediu. Vários carros começaram a nos ultrapassar.
Após algum tempo, olhei para ela, aguardando instruções.
- Mantenha-se assim - disse, como se estivesse lendo meu pensamento.
Lutei contra o desejo de acelerar e voltar para a faixa da esquerda.
Os outros carros continuaram nos ultrapassando. Naquela velocidade, levaríamos o triplo do tempo para chegar à praia. Comecei a ficar angustiado.
De repente, ela disse:
- Pronto. Pode voltar a acelerar agora. Obedeci, agradecido.
- O que você queria me mostrar? - perguntei. - Não vi nada.
- Não está vendo porque não quer. Repare como a estrada está mais vazia.
Cerca de cem metros à nossa frente ia um agrupamento de carros.
Todos muito próximos uns aos outros.
Olhei pelo retrovisor e vi outro grupo cinqüenta metros atrás de nós.
Parecíamos estar num vácuo do trânsito. - Caramba! Como você fez esta bruxaria? - exclamei.
- Não seja bobo... Isso não é uma bruxaria. Apenas diminuímos a velocidade e saímos da aglomeração. Talvez você não saiba, mas as pessoas têm necessidade de permanecer em grupos, mesmo quando não se conhecem.
A estrada é um exemplo típico. Quando se sentir pressionado, basta diminuir um pouco a velocidade, e o grupo passará por você, deixando a estrada livre.
Instintivamente acelerei um pouco mais, tentando alcançar os carros da frente, e entendi o que ela quis dizer em relação à necessidade de se estar próximo dos outros.
- Lá atrás vem vindo outro grupo - continuou. - Se você souber administrar, ficaremos entre os dois e teremos a estrada praticamente vazia para nossa viagem. Se o grupo de trás nos alcançar, poderemos diminuir e deixá-lo passar. É só isso - concluiu.
Podia ver os dois blocos de carros aglomerados. De fato, era muito mais tranqüilo viajar no intervalo entre eles.
- Incrível! Na auto-escola que freqüentei não me ensinaram este truque.
Onde você aprendeu a dirigir? - perguntei.
- Essas coisas têm mais relação com a capacidade de observar o comportamento das pessoas do que com o ato de dirigir carros - respondeu.
- Vou mostrar este truque aos meus amigos. Já até sei como vou chamá-lo: “Fugindo do bolo”. Aliás, quem gosta de ficar no meio do bolo é recheio, não? - gracejei. Ela ajeitou-se melhor no banco.
- Na vida, enfrentamos situações semelhantes todo o tempo. Muitas vezes deixamos nossos desejos de lado e somos arrastados pelo movimento do grupo. O pior é que temos medo de desacelerar e deixar o grupo
passar - comentou.
Pensei um pouco antes de perguntar.
- Será falta de personalidade? - indaguei.
- Colocando dessa forma, parece ser uma coisa ruim, mas não é boa nem ruim, é apenas uma característica que possuímos. Só precisamos ficar atentos para saber quando estamos fazendo algo porque acreditamos ou porque estamos sendo levados pelo grupo. Passamos por uma placa indicando o pedágio dois quilômetros à frente.
- Devemos fazer como os navegantes experientes: saber aproveitar o movimento das correntes oceânicas para nos levar a grandes distâncias... e manobrarmos por nossa própria conta quando for necessário - concluiu.
- Essa lição está abstrata demais para mim - reclamei.
- Você quer sempre tudo mastigadinho, não é? - perguntou.
- É sempre bom ouvi-la explicando - argumentei, desligando o rádio.
Para me provocar, ela fez uma cara de fingida resignação antes de continuar.
- Muitas vezes precisamos do apoio do grupo para empreender nossos projetos. Na África, por exemplo, uma zebra fica muito mais segura quando está no grupo. Sozinha ela se torna desprotegida e vulnerável. Encontre um grupo que possua um ritmo adequado, semelhante ao seu, e tudo será muito mais fácil. Por outro lado, se sentir desconforto, como estava há pouco no agrupamento de carros, saiba desacelerar e deixá-lo ir.
- Parece bem lógico - afirmei.
- Entretanto, é difícil fazer, pois acreditamos que, ao diminuir o ritmo, estaremos perdendo alguma coisa. O medo de sair é angustiante e nos deixa infelizes.
Ela fez uma pequena pausa.
- O importante é não confundir o seu ritmo com o do grupo. E não ter medo de deixá-lo quando sentir incompatibilidade... Como disse, o bom navegante sabe quando deve entrar na corrente e também quando é hora de remar sozinho.
Permaneci em silêncio, pensando em suas palavras. O que ela havia dito era óbvio. A grande diferença é que ela aplicava o conhecimento à vida, e eu, não.
Eu era um teórico. Descrevia mapas, sem nunca ter percorrido as verdadeiras estradas. Era como muitas pessoas que conhecia. Tinha medo de assumir a responsabilidade pela minha vida e tomar as decisões necessárias.
Sempre havia sido conduzido pelo ritmo do grupo.
Percebi como era angustiante viver assim, e essa sensação me incomodou profundamente. Senti que era hora de arregaçar as mangas e começar a fazer as coisas acontecerem.
- Hoje se iniciaram minhas aulas práticas. Assim, como bom aluno, vou aplicar meus novos conhecimentos desde já - exclamei.
Ela fez uma expressão de surpresa.
- Para começar, vou treinar entrar e sair dos grupos nesta nossa viagem, de acordo com nosso próprio ritmo. Chega de descrever mapas. A partir de agora vou tornar minha vida extraordinária.
Ela sorriu satisfeita com meu discurso.
- Então prepare-se, terá muito trabalho, mas o melhor está por vir - declarou.
Em pouco tempo, estava me divertindo em controlar a velocidade para entrar e sair dos grupos de carros e percebi que em alguns eu me sentia muito mais confortável do que em outros.

O próximo passo seria estender este conhecimento para toda minha vida. Ainda não sabia como fazê-lo, mas tinha certeza de que ela me ajudaria a encontrar o caminho.

3 comentários:

Cristiane Brandão disse...

Olá Luciana tudo ótimo!

Que maravilha de capítulos, estou aprendendo e reaprendendo cada dia.
Como é bom ter pessoas como você que melhora os nossos dias.

Um grande abraço

Cristane Brandão

Rosana disse...

"Encontre um grupo que possua um ritmo adequado, semelhante ao seu, e tudo será muito mais fácil."
Gostei muito desse trecho, perfeito!
Agradeço por estar colocando o livro aqui no blog.
Sem dúvida, é um dos melhores que já li.
Abraços,

Ana Regina disse...

Obrigasdo por postar os outros capítulos .Deus te abençõe