quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Livro da Bruxa - 13º Capítulo

Neblina

Fiz questão de deixá-la escolher o prato de nosso almoço, e ela pediu apenas uma salada. Tentei convencê-la a comer algo mais substancioso, mas ela se mostrou irredutível.
- Sinceramente, acho pouco comer apenas uma salada no almoço. - insisti.
- Comer bem não significa comer muito. Num antigo papiro egípcio está escrito que o nosso corpo só necessita de metade do que ingerimos para viver, a outra metade serve para sustentar os médicos - comentou, provocando-me.
Fiz uma careta, mas não retruquei. Ela tinha toda razão.
- Aliás, o exagero é um dos principais problemas de nossa época. Estamos gerando muito calor e pouca luz - declarou.
- Muito calor e pouca luz? - repeti.
- É! Como uma lâmpada ineficiente. Por causa dos exageros, estamos consumindo muita energia e produzindo poucos resultados.
- Gostaria de ouvir mais sobre essa sua teoria.
- Não é teoria, é um fato. Somos tentados a acreditar que, se um pouco é bom, muito será ainda melhor... Daí não importa mais a qualidade, apenas a quantidade - disse.
- Por exemplo?
- Você acabou de insistir comigo para pedirmos mais comida, não foi? Como se viver intensamente implicasse em cometer exageros. Estamos vivendo numa época de grandes excessos... Veja as cidades, por exemplo.
Construímos edifícios tão altos que não conseguimos mais enxergar o horizonte e passamos a habitar uma enorme caixa sem tampa, pois a única forma de enxergar o céu é olhando para cima. Com isso, excluímos a possibilidade de assistir ao nascer e ao pôr-do-sol... E à noite temos tantas luzes artificiais que não e mais possível ver as estrelas. Há tantos carros, caminhões e ônibus que ouvimos o ruído de seus motores todo o tempo.
Daí, não podemos ouvir os passarinhos e não existe mais o tranqüilo silêncio da madrugada para repousar.
- Acho que as pessoas não estão dispostas a abrir mão destes confortos da vida moderna - ponderei.
- Tenho certeza de que não. Contudo, viver assim é como estar num local de permanente neblina. Vamos perdendo a capacidade de nos maravilharmos com a natureza. Perdemos a sensibilidade e a delicadeza. Precisamos falar mais alto para sermos ouvidos, comer mais para ficarmos satisfeitos, acender mais luzes para enxergarmos, usar perfumes mais fortes para sentirmos a fragrância, criar músicas mais barulhentas, dirigir carros mais rápidos...
- Mas você mesma disse que não existe nada bom nem ruim. Qual é o problema em exagerarmos? - questionei.
- Não estou dizendo que isso é ruim, apenas que é uma característica da época em que vivemos. Se não tivermos consciência disso, continuaremos nos sentindo angustiados, impotentes e fracassados. Pois, apesar de tentar, não conseguiremos assistir aos cem canais disponíveis na televisão, ler diariamente as trezentas páginas do jornal, ficarmos lindas como as modelos profissionais, viver paixões tão arrebatadoras quanto as descritas nos romances, alcançar o sucesso tão extraordinário quanto os grandes empresários, possuir mansões tão majestosas como os artistas de cinema... Criamos um mundo em que parece ser cada vez mais complicado estar bem, pois os exageros sobrepõem-se uns aos outros.
- Mas é uma característica dos seres humanos desejar ir sempre mais além, não é? - opinei.
- Sim, mas não devemos perder de vista as coisas essenciais. Somos como árvores que crescem em direção ao céu, mas deixam as raízes enfraquecerem.
Ela apoiou os braços sobre a mesa e entrelaçou os dedos.
- Você deve ter dezenas de pacientes queixando-se de depressão e angústia, não tem? - perguntou.
- Sim, tenho - admiti.
- Observe e descobrirá que todos estão assim porque deixaram de perceber a importância das coisas simples.
- Então exagerar é um pecado? - indaguei.
- Não, o único pecado é não aproveitar a vida. Cometer exageros de vez em quando é essencial para vivermos intensamente.
- Não entendo... - protestei.
- O exagero voluntário é diferente daqueles a que somos compelidos sem nos darmos conta - disse.
- Ainda não entendi.
Ela olhou em volta, procurando algo. Em seguida, disse alguma coisa num volume tão baixo que não consegui ouvir.
- Desculpe-me, não ouvi. Poderia repetir? - pedi.
Ela fez um sinal chamando o garçom. Quando ele se aproximou, ela pediu para desligar um ventilador próximo à nossa mesa.
Ele atendeu sua solicitação, e, de repente, o ambiente ficou agradavelmente silencioso.
- É um grande prazer estar compartilhando este almoço com você - disse, no mesmo volume baixo de antes.
- Obrigado. Também estou honrado com sua companhia - retribuí.
- Por que você não conseguiu ouvir da primeira vez? - perguntou.
Pressenti uma nova solapagem e hesitei uns dois segundos antes de responder.
- Porque o ventilador estava ligado e fazia muito ruído - arrisquei.
- O barulho nos forçava a exagerar. Agora, se quisermos, podemos até falar alto, mas é uma opção; antes não era.
- Deixe-me ver se entendi. Às vezes, vivenciamos situações nas quais o ambiente nos força a exagerar sem tomarmos consciência do fato... Na verdade, só percebi o ruído que o ventilador estava fazendo quando você pediu para desligá-lo.
- Sabe por que você não percebeu logo de saída?
- Porque ele já estava ligado quando nos sentamos aqui - respondi.
- Pois é. São as situações mais difíceis de serem notadas. As que já existiam antes de chegarmos. São aquelas nas quais acreditamos porque nossos pais acreditavam. E eles, por sua vez, as herdaram de nossos avós, e assim por diante.
Um garçom chegou trazendo a salada e serviu-a em nossos pratos.
- Dê-me um exemplo de situação desse tipo - solicitei.
- Você não desiste de tentar conseguir as coisas sem pensar a respeito, não é? - censurou-me.
Pus as duas mãos no rosto, fingindo estar muito envergonhado.
- Olhe para o céu. Você consegue ver as estrelas? - perguntou.
O céu estava totalmente azul. Não havia uma única nuvem, e o sol estava radiante.
- Ver as estrelas agora? Ainda é meio-dia e meia - exclamei.
- Contudo, as estrelas estão todas aí. Você não consegue vê-las porque o brilho do sol é muito intenso. As estrelas estão sempre no céu, mesmo durante o dia. Pense um pouco sobre isso e obterá as respostas sobre os excessos que cometemos sem nos darmos conta.
- Prometo que farei isso - declarei. - Mas, antes, vamos comer nossa salada. Estou morrendo de fome.
- Bom apetite - ela desejou.
- Bom apetite - retribuí.

3 comentários:

Rosana disse...

Estou gostando muito do livro, aprendendo mais a cada dia.
Muito obrigada pela excelente leitura!
Abraços,

Luciana Vieira disse...

Rosana, Um beijo!

Lucimara Jamielniaski Zelazowski disse...

Luciana!
O livro é muito interessante!!!
E gosto muito do seu blog.
Um beijo no coração!!!