Chegou o entregador de frutas! - bradei ao entrar no quarto. - Olá! Achei que você viria mais cedo - ela respondeu, colocando de lado a revista que estava lendo.
Eram quase dez horas da noite. Eu estava bastante atrasado porque
tinha passado na casa de um amigo antes de ir ao hospital. Ficamos conversando, e eu me esqueci da hora.
- Desculpe-me pelo atraso... Como combinamos, hoje não estou aqui como médico. Mas antes de assumir meu papel de visitante, deixe-me saber como você está. Teve algum episódio de tosse ou febre?
- Nem tosse nem febre. Estou muito bem, obrigada.
Coloquei o pacote que havia trazido sobre a mesa.
- Trouxe-lhe algumas frutas. Pretendia trazer uma pizza também, mas depois achei que não seria muito adequado - gracejei.
- Obrigada. Comeremos pizza numa outra ocasião. Que frutas você trouxe? - perguntou.
- Uvas e maçãs.
- Então vamos comer uvas. Você já jantou?
- Comi um lanche na casa de um amigo antes de vir para cá - respondi.
- Ótimo. As uvas serão uma excelente sobremesa. Você se importaria em prepará-las para nós?
- Terei o máximo prazer - disse, adotando uma atitude galante.
Abri o pacote, peguei dois cachos de uva e lavei-os. Entreguei um a ela e acomodei-me na cadeira com o outro. - E então, qual é o tema da aula desta noite? - perguntei, antes de colocar uma uva na boca.
Ela franziu a testa.
- Primeiro vamos ver se você aprendeu algo da aula anterior. Fale-me sobre a figura de ontem.
- O quadrado e suas diagonais? - perguntei. - Sim. É uma das possibilidades - ela disse. Peguei uma folha de papel e comecei a reproduzir a figura, ganhando tempo para relembrar.
- Bem... Aprendi modos diferentes de ver a mesma coisa. Consegui vê-lo como um problema de geometria, um envelope, uma ampulheta, uma porteira... Acho até que, com o tempo, encontrarei outras possibilidades.
Enquanto eu desenhava, ela olhava interessada para suas uvas. Parecia uma criança com um novo brinquedo.
- As possibilidades são infinitas. O único limite é até aonde queremos ir - murmurou como se estivesse falando para si mesma.
- Você conhece outras coisas que podem ser vistas neste desenho? - perguntei, insinuando um desafio.
Como um aluno esperto diante de um problema difícil, eu tentava aproveitar a distração da professora para obter a resposta sem precisar pensar a respeito.
Ela percebeu minhas segundas intenções.
- Nada como conseguir as coisas sem trabalho, não é? Você continua querendo colecionar mapas e ainda não tomou coragem para empreender suas próprias viagens - recriminou-me.
- Tenha um pouco de paciência comigo. Prometo me esforçar. Mas estamos numa noite de sábado e meu cérebro não funciona bem nesta condição... Ajude seu pobre aluno... Que outra possibilidade posso ver neste desenho? - balbuciei, fingindo sofrimento.
Ela retirou uma uva do cacho e saboreou-a com toda a calma do mundo antes de responder.
- Uma pirâmide vista por cima.
Olhei para a figura e lá estava a vista aérea de uma pirâmide.
Uma pirâmide vista por cima! É claro, uma pirâmide vista por cima!
Como é que eu não havia percebido antes? Imagens de desertos, camelos e tendas árabes surgiram em minha mente.
Estava fascinado com aquele jogo. Como era possível o mesmo desenho transformar-se em coisas tão diferentes? Tornei a desafiá-la.
- Muito bom. Há mais alguma coisa neste desenho?
- Esta figura é como nossas vidas. Há infinitas possibilidades. Nós é que determinamos quantas e quais queremos ver. É um poder que todos nós possuímos. Podemos utilizá-lo ou não.
Fiz cara de quem não estava acreditando. Achava que ela tinha esgotado seu repertório e estava blefando. Ela percebeu minha incredulidade e, sem desviar o olhar das uvas que segurava, balançou a cabeça.
- Muito bem. Vou lhe dar mais uma possibilidade... mas se quiser
outras terá de consegui-las sozinho, combinado? - propôs. - Combinado - concordei.
- Então tente um corredor bem comprido. Um corredor infinitamente longo - sugeriu.
- Um corredor?
Olhei para o desenho e a pirâmide havia-se transformado num longo corredor. Lá estavam as paredes, o teto e o piso seguindo até o infinito.
Não contive minha surpresa.
- Você é uma bruxa de verdade, não é? - perguntei.
- Sou como o desenho. Posso ser uma bruxa ou muitas outras coisas.
Acho que preferiria ser uma fada. As bruxas não são bem-vistas pelas pessoas.
Entretanto, uma bruxa é mais compatível com a forma na qual você me vê. Então, continuarei sendo uma bruxa, está bem? - declarou, divertida.
Acenei com a cabeça, concordando.
Ela levantou-se da cama e postou-se na minha frente. - Esta nossa capacidade de transformar as coisas é a base de uma vida produtiva e repleta de bons momentos. Contudo, muitas pessoas não utilizam este poder.
Vêem apenas uma possibilidade e passam a vida reclamando de limitações que na realidade não existem. Andou um pouco pelo quarto antes de continuar.
- Qualquer coisa pode ser trabalhada como este desenho - concluiu, apontando para a folha de papel. - Gostaria muito de concordar com você, mas me parece um método para fugir dos problemas. Não dá para olhar para algo ruim e simplesmente transformá-lo em alguma coisa boa. Pelo menos eu não sei como faze-lo - retruquei.
- Não existem coisas boas nem ruins. Nós é que as rotulamos de boas ou ruins, segundo nossas crenças. A mesma situação pode ser encarada como algo bom por uma perspectiva e ruim por outra. É isso que a brincadeira com o desenho nos ensina.
- Gostaria de ver isso na prática - suspirei. - Dê-me um exemplo.
- Ah! sempre relutando em tentar sozinho. Nada como ter tudo mastigadinho, não é? - censurou-me. Voltou para a cama e cobriu-se com o lençol. -Vou providenciar alguns exemplos práticos para você, mas também ficará a seu cargo estendê-los para todas as outras coisas da sua vida.
- E quando será esta aula prática? - perguntei. -Você saberá quando for a hora. Não se preocupe. Arrumou o travesseiro e deitou-se, preparando- se para dormir.
- Obrigada pela visita e pelas frutas. Não quero ser indelicada, mas amanhã terei muitas coisas para fazer e gostaria de dormir agora. Deseje-me uma boa noite de sono e vá aproveitar esta linda noite de sábado. Passe aqui amanhã pela manhã.
Levantei-me, beijei-a carinhosamente no rosto e recomendei-lhe bons sonhos.
- Obrigado pela aula - agradeci. - Obrigada pela companhia. Apaguei a luz ao deixar o quarto. Interpretações Fui para casa pensando em tudo que havíamos conversado. Ela mudara por completo meu conceito de envelhecer. Se eu chegasse a uma idade avançada, gostaria de estar tão ativo quanto ela.
Talvez, como ela havia sugerido, não existissem coisas boas nem ruins.
Lembrei-me de um padre do colégio em que estudei. “Temos de fazer como as plantas: quando caírem porcarias sobre nós, devemos transformá-las em adubo e usá-lo para crescermos ainda mais fortes”, ele sempre repetia. Lembrei-me também de uma situação engraçada que aconteceu com um amigo.
Certa vez sua esposa precisou sair durante a tarde de um domingo e deixou-o tomando conta dos filhos, uma menina de cinco e um menino de quatro anos. Dois pequenos furacões, com toda aquela energia inesgotável da idade. Era uma missão bastante desafiadora, pois ele nunca tinha assumido tal encargo sozinho. Para complicar, a decisão do campeonato de futebol ia ser transmitida pela TV, e ele pretendia assisti-la a qualquer custo. Meia hora após a saída da esposa, ele já se sentia totalmente esgotado.
As crianças corriam pela casa, subiam e desciam as escadas, espalhavam brinquedos, riam e gritavam. Um verdadeiro terremoto de grandes proporções.
Claro que ele tentou estabelecer alguns acordos, mas seu esforço de paz foi devidamente ignorado.
A partida de futebol estava começando, e o garotinho, não satisfeito com a anarquia já instalada, decidiu ligar o equipamento de som num volume altíssimo.
Buscando resolver a situação sem violência, meu amigo tentou convencê-lo a diminuir o volume. Foi em vão. Testando os limites do pai, o garoto aumentou ainda mais o volume e riu sadicamente.
Vendo-se arrastado pela catástrofe, o pai perdeu a paciência e fez algo que nunca havia feito antes. Levantou-se irritado do sofá e pós o filho de castigo. Colocou uma cadeira de frente para a parede e mandou-o ficar sentado lá, em silêncio absoluto.
O menino obedeceu sem reagir e sentou-se, ainda segurando um carrinho de plástico na mão.
Depois disso, a casa ficou um sossego, e ele pôde assistir ao jogo sem mais problemas.
Entretanto, a paz foi tanta, e o futebol, tão emocionante que ele se esqueceu completamente do filho no castigo. Só lembrou do fato no intervalo da partida, quase uma hora depois.
Quando isso aconteceu, ele pulou do sofá como se um alarme tivesse
disparado em sua cabeça e correu arrependido para o local onde deixara o filho confinado havia tanto tempo.
O menino estava lá, quieto e concentrado em seu carrinho de plástico.
O diálogo que se seguiu foi mais ou menos o seguinte.
- Pronto, já pode sair do castigo agora - disse o pai, tentando manter a autoridade, mas sentindo um aperto no coração pela punição exagerada.
E o menino, ainda entretido com o seu carrinho, respondeu:
- Ah, pai. Deixe-me brincar mais um pouquinho aqui no castigo.
O mais engraçado é que a irmãzinha, ouvindo o que estava acontecendo, pediu para participar.
- Pai, deixe-me ir para o castigo? Eu também quero brincar de castigo!
- exigiu, já arrastando outra cadeira de frente para a parede e sentando-se ao lado do irmão.
Quando ouvi essa história, achei-a brilhante. O menininho havia transformado
uma situação desfavorável numa divertida brincadeira.
Ao relembrá-la, percebi que era um exemplo perfeito da lição que a bruxa tentava me mostrar. Podemos transformar nossas vidas apenas alterando a perspectiva pela qual encaramos nossos problemas. Convertendo coisas aparentemente ruins em bom adubo.
Os alquimistas sempre buscaram a capacidade de transformar metais comuns em ouro. Mas talvez a grande obra seja esta nossa capacidade de transformar as situações desfavoráveis em momentos preciosos, inspiradores e divertidos.
Naquela noite comecei a sentir o ranger de algumas portas da minha alma, há tanto tempo fechadas, se abrindo.
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